Li três quartos do livro escrito por Javier Cercas, um escritor ateu espanhol, sobre o Papa Francisco em geral e sobre a sua viagem à Mongólia em particular.
Nas muitas entrevistas que realiza com as pessoas que rodeiam Francisco, surge uma pergunta recorrente, que poderíamos formular da seguinte forma: se o Papa foi escolhido para ser um líder espiritual, porque é que só fala de assuntos terrenos? A dúvida é ainda mais pertinente se soubermos que todo o livro é uma tentativa de Cercas de perguntar sobre a ressurreição da carne e a vida após a morte, que são, de facto, temas puramente espirituais.
As derivas que esta questão toma ao longo do livro são várias e interessantes, mas, acima de tudo, permitem-nos falar de um tema: o facto de o Papa Francisco ter deixado claro que temos um problema como leitores nos tempos dos algoritmos e da leitura superficial.
Lembro-me de uma vez, em conversa com um padre amigo meu, que não estava muito sintonizado com o Papa Francisco - ou com quem ele achava que era o Papa Francisco -, ter reprovado em voz alta precisamente isto: que o Papa não falava dos temas centrais da fé católica, enquanto se dedicava a falar de questões "políticas", como as migrações, o cuidado com a natureza ou a preocupação com os pobres. Deixaremos esta segunda parte da sua declaração para outra altura. Mas, nesse dia, não foi difícil desmontar essa realidade paralela criada por um sítio da Internet, pois algumas horas antes o Papa tinha dedicado a sua décima audiência geral consecutiva a uma catequese sobre a Santa Missa, o mistério central da fé cristã. Logicamente, isso não aparecia no blogue de informação do Vaticano que o meu amigo padre lia, nem nos títulos da imprensa comum que ele via fugazmente nas redes sociais.
Se já era um problema para a verdade o facto de consumirmos apenas a informação que recebemos dos algoritmos das redes sociais ou de algum blogue com intenções duvidosas, agora esta complicação multiplicou-se com a inteligência artificial.
Há alguns dias, celebrou-se o Dia da Mãe em muitos países do mundo e recebi várias vezes um vídeo falso do Papa Leão XIV a refletir sobre a tarefa materna. Tal como o meu amigo padre pensava que Francisco nunca falava sobre a vida espiritual, outros podem agora pensar que Leão XIV é um especialista em felicitações pirosas para os dias mundiais de cada membro da família.
A tarefa de nos formarmos como leitores de notícias é urgente, porque dela depende a imagem que formamos do mundo. E o mesmo se aplica à informação religiosa: a tarefa de nos formarmos como leitores de notícias sobre o Papa é urgente, porque dela depende a imagem que formamos da sua pessoa e da Igreja, com claras repercussões também na nossa vida espiritual.
Será que devemos pedir a um jornal vulgar, com temas eminentemente políticos, que informe sobre a Igreja num sentido espiritual? É evidente que não.
Podemos pedir aos meios de comunicação social que nos dêem um resumo dos encontros do Papa com os religiosos do país que está a visitar? É evidente que não.
Podemos pedir-lhe que faça um resumo de cada catequese dedicada aos diferentes sacramentos? Não.
Cada meio de comunicação social procura o que interessa aos seus leitores. Esse meio de comunicação procurará o que há de político nas actividades do Papa e, filtrado pelo filtro da sua linha editorial, transmiti-lo-á aos seus leitores. É essa a sua função. Se estamos a pedir peras a um ulmeiro, o problema é nosso, não deste ou daquele jornal.
Um domínio talvez ainda mais delicado é o dos sítios de informação sobre a Igreja. Pois poder-se-ia pensar que se resolve o problema do leitor visitando sítios Web especificamente dedicados a estes temas. No entanto, também não é assim tão fácil.
Se tem alguma familiaridade com estes meios de comunicação social, sabe que há aqueles que são frequentemente designados como mais "conservadores" e aqueles que são mais "liberais", com as infinitas limitações que estes termos têm no mundo religioso. E precisamente o facto de podermos usar esses rótulos é parte do problema.
Na maior parte dos casos, não fazem uma reportagem sobre o Papa com uma visão espiritual e sobrenatural da Igreja, mas sim com uma visão terrena da Igreja, como se tudo fosse uma luta política, como se o objetivo da Igreja fosse eliminar o inimigo, mesmo que, logicamente, tenham de disfarçar os seus textos com adornos piedosos.
Podemos pedir-lhes que se abram ao que o Espírito Santo sopra, mesmo que seja algo que não se alinhe com o seu pensamento, mesmo que gere menos cliques e mesmo que não alimente os seus leitores, ávidos de confirmação constante da sua própria visão da realidade? Não.
Todos são livres de produzir informação como entenderem, mas não podemos esperar uma perspetiva verdadeiramente religiosa de todos os meios de comunicação social religiosos.
Esta foi uma das realidades que Francisco desmascarou, quanto mais não seja por causa do tempo em que viveu: a necessidade de nos formarmos como leitores de notícias. A necessidade de descobrir as fontes, de ir ter com elas, de renunciar à morbidez da política eclesial, de ter intermediários fiáveis: tudo isto são competências que nos servem também para a vida fora da esfera religiosa, sobretudo em tempos de inteligência artificial.
Nessas conversas com pessoas que não estavam em sintonia com Francisco - mais uma vez: com quem pensavam que Francisco era - não era raro chegar a esta questão: quanto tempo passou a ler os escritos do Papa em primeira mão, e quanto tempo passou com os meios de comunicação social que o querem manter viciado na telenovela religiosa? Muito poucas pessoas foram à verdadeira fonte e, logicamente, estavam a lutar nas suas mentes com um estereótipo criado numa qualquer redação.
Que isso não nos aconteça com Leão XIV. Obrigado", disse o Papa no seu encontro com os meios de comunicação social, há alguns dias, "por tudo o que fizeram para abandonar os estereótipos e os lugares comuns através dos quais muitas vezes lemos a vida cristã e a própria vida da Igreja". Foi um gesto de cortesia que, na realidade, esconde talvez um pedido elegante.