


Num mundo marcado por avanços tecnológicos vertiginosos, a inteligência artificial (IA) está a emergir como uma ferramenta poderosa que transforma a sociedade, a economia e as relações humanas. A IA é um dom da criatividade humana que pode glorificar Deus ao serviço do bem comum, ou um perigo que ameaça a dignidade do indivíduo?
A Doutrina Social da Igreja (DSI), enraizada no Evangelho e desenvolvida ao longo dos séculos, oferece uma luz profética para discernir e orientar esta "revolução digital". Como afirmou o Papa Leão XIV no seu primeiro discurso aos cardeais, a 10 de maio de 2025, "os progressos da inteligência artificial colocam novos desafios à defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho". Inspirado por Leão XIII, que respondeu à Revolução Industrial com Rerum Novarum (1891), Leão XIV deu prioridade à IA como a "nova questão social", apelando a uma resposta ética que integre a fé católica e a inovação tecnológica.
Este artigo tem como objetivo sintetizar alguns dos ensinamentos da Igreja sobre a IA, seguindo os princípios da DSI. Enriquecido com documentos recentes como Antiqua e nova (2025), a Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2024 e as reflexões de Leão XIV, explora a definição de IA, o seu contexto, os princípios morais aplicáveis e algumas recomendações práticas. A DSI não impõe regras rígidas, mas oferece princípios universais - dignidade humana, bem comum, solidariedade e subsidiariedade - e valores - verdade, liberdade, justiça e amor - para orientar a sua utilização responsável. Numa altura em que a IA permeia a vida quotidiana, desde as recomendações personalizadas aos diagnósticos médicos, a Igreja convida-nos a uma reflexão profunda para que esta tecnologia sirva o homem e não o escravize.
O que é a Inteligência Artificial?
A IA é uma tecnologia criada pelo homem que imita as funções da inteligência humana, como o raciocínio, a aprendizagem e a tomada de decisões. Com base em algoritmos matemáticos e modelos de aprendizagem automática, processa grandes volumes de dados para identificar padrões, fazer previsões e executar tarefas autónomas. Como explicado por Antiqua e novaA IA não possui inteligência no sentido humano - que inclui alma, emoções e capacidade moral - mas funciona funcionalmente, imitando processos cognitivos sem consciência genuína.
Exemplos quotidianos incluem assistentes como o ChatGPT ou o Grok, que sintetizam informações em segundos; recomendações personalizadas na Netflix ou na Amazon; chatbots em empresas como o BBVA; e análise de redes sociais por marcas como a Coca-Cola. Por exemplo, um assistente como o ChatGPT pode resumir a Bíblia ou escrever um poema ao estilo de Lope de Vega em segundos.
A utilização da IA está a crescer exponencialmente. Um estudo do GAD-3 (2025) indica que 85% dos adolescentes utilizam a IA pelo menos uma vez por semana. Além disso, um relatório da Microsoft (2024) indica que a utilização da IA cresceu de 55% em 2023 para 75% em 2024, com as organizações a empregarem frequentemente a IA generativa para otimizar processos, produtos e vendas. Na medicina, a IA acelera os diagnósticos; na educação, gera conteúdos multilingues; na ciência, analisa dados para combater a fome ou as alterações climáticas.
No entanto, a IA comete erros - como confusões ou geração de informações falsas - e não substitui o julgamento humano. Como adverte Antiqua e novaA sua moralidade depende das escolhas humanas: "Como qualquer produto da criatividade humana, a IA pode ser orientada para fins positivos ou negativos". Esta distinção é crucial, pois a IA não é neutra: a sua conceção e aplicação reflectem valores humanos, e a Igreja convida-nos a orientá-la para o bem.
Contexto histórico: da revolução industrial à revolução digital
A Revolução Industrial (séculos XVIII-XIX) transformou a produção com inovações como a máquina a vapor, multiplicando a produtividade, mas conduziu à desigualdade e ao desemprego. Leão XIII reagiu com Rerum NovarumA organização está empenhada na dignidade do trabalhador e na promoção da justiça social com base nos princípios bíblicos e nos ensinamentos de Jesus.
A inteligência artificial (IA) está a desencadear uma revolução de alcance global, comparável, ou mesmo superior, à Revolução Industrial, transformando tanto o mundo como a missão da Igreja. Por exemplo, um estudo do Fórum Económico Mundial de 2023 prevê que a IA irá automatizar 25% dos empregos globais, reduzindo os custos em alguns sectores em 30-40%, mas poderá gerar maiores desigualdades. O Papa Leão XIV associa-a às "coisas novas" digitais, comparando-a à Revolução Industrial.
Esta transformação levanta uma questão crucial: a IA é apenas um avanço incremental ou uma mudança qualitativa? O consenso atual aponta para a segunda hipótese: a IA introduz uma diferença fundamental ao imitar o raciocínio humano, marcando uma nova categoria na sociedade. Como descreveu o Papa Francisco, estamos perante uma "mudança de época", uma verdadeira revolução, que exige uma profunda reflexão ética para orientar o seu imenso potencial para o bem comum e a glória de Deus. Na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2024, o Papa Francisco sublinhou que a IA pode promover a paz se for orientada para o bem comum, mas adverte contra a sua má utilização em conflitos ou discriminações.
A Igreja valoriza a IA pelo seu potencial na ciência, na medicina e na equidade, mas insiste que quaisquer avanços devem servir a dignidade humana. Ferramentas como o Magisterium AI sintetizam os ensinamentos da Igreja, ilustrando como a IA pode evangelizar e difundir o Evangelho a novos públicos.
De Leão XIV à revolução da IA
O Papa Leão XIV, eleito Romano Pontífice a 8 de maio de 2025, sublinhou desde o início o papel da IA no seu magistério. A escolha do seu nome em referência a Leão XIII não é por acaso: ele procura responder às "coisas novas" do nosso tempo, como a revolução digital, com a mesma audácia e "espírito profético" com que o seu antecessor enfrentou a revolução industrial. No seu primeiro discurso aos cardeais, Leão XIV declarou: "Os avanços da inteligência artificial colocam novos desafios à defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho", sublinhando a necessidade de uma orientação moral que coloque o ser humano no centro.
Na sua mensagem aos participantes na Segunda Conferência Anual sobre a IA, em 17 de junho de 2025, o Papa desenvolveu esta visão: "A vossa presença testemunha a necessidade urgente de uma reflexão séria e de um diálogo permanente sobre a dimensão ética inerente à IA, bem como sobre as suas implicações para o futuro da humanidade". Neste contexto, Leão XIV sublinhou que a IA deve ser gerida de forma ética, promovendo um desenvolvimento inclusivo que respeite a dignidade de cada pessoa. Além disso, numa mensagem dirigida aos líderes empresariais da IA, em 20 de junho de 2025, afirmou: "A inteligência não consiste em acumular dados, mas em procurar o verdadeiro sentido da vida, não em ter pilhas de informação". Isto evidencia a sua preocupação com uma abordagem tecnocrática que esquece o espiritual.
Leão XIV tem apelado repetidamente a um tratado internacional para regular a IA, assegurando que os seus objectivos sejam orientados para o bem comum, a justiça e a paz, com a supervisão humana sempre presente. Há rumores de uma encíclica intitulada Rerum Digitalium sugerem que irá explorar estas questões de forma mais aprofundada, no espírito do Rerum Novarum. O seu legado inicial posiciona a Igreja como uma voz moral global nesta revolução, insistindo que "a dignidade humana nunca deve ser violada em nome da eficiência". Assim, Leão XIV não só alerta para os riscos, como propõe uma ética que integra os valores cristãos na conceção da IA.
Princípios da Doutrina Social da Igreja aplicados à AI
A DSI propõe quatro princípios universais e quatro valores para orientar a IA, assegurando que se trata de um "progresso autêntico". Para que qualquer desenvolvimento tecnológico, avanço ou inovação represente um autêntico progresso, deve cooperar com a dignidade da pessoa e o bem comum. Os princípios do pensamento social católico, derivados do Evangelho e do Magistério, são aplicados à IA para equilibrar a inovação com a ética humana. Uma apresentação completa pode ser encontrada no Compêndio 2004 da DSI. Estes princípios são apresentados em pormenor a seguir, incluindo exemplos específicos e citações relevantes.
- Dignidade da pessoa humanaEste princípio fundamental afirma que o ser humano, criado à imagem de Deus (Gn 1,27), é um fim em si mesmo e não um meio para fins tecnológicos ou económicos. No contexto da IA, implica que as máquinas devem servir o homem e não degradá-lo. Por exemplo, no local de trabalho, a IA pode automatizar tarefas repetitivas, libertando tempo para actividades criativas, mas não deve reduzir os trabalhadores a "engrenagens" descartáveis. Antiqua e nova sublinha que a inteligência humana pertence a toda a pessoa, por oposição à IA funcional, que carece de alma ou empatia. No domínio da saúde, a IA pode diagnosticar com precisão, mas deve ser complementada pela compaixão humana, respeitando o consentimento informado e a inviolabilidade do paciente. A IA não deve "criar um substituto para Deus", mas sim respeitar a dignidade inerente.
- Bem comumRefere-se ao conjunto de condições sociais que permitem o desenvolvimento integral de todos, incluindo o destino universal dos bens. A IA deve promover o acesso equitativo aos recursos, evitando que beneficie apenas as elites. Por exemplo, na educação, ela pode gerar conteúdos personalizados para regiões subdesenvolvidas, mas se for concentrada nas mãos de corporações, agravará as desigualdades digitais. A Mensagem de Francisco para a Paz em 2024 sublinha que "as tecnologias que não melhoram a qualidade de vida de toda a humanidade, mas agravam as desigualdades, não são um verdadeiro progresso". Isto alinha-se com a opção preferencial pelos pobres, onde a IA poderia inovar na agricultura para combater a fome, mas apenas se for orientada para o bem de todos e do homem inteiro.
- SolidariedadeReconhecendo a interdependência humana como uma família criada por Deus, este princípio incita-nos a cuidar dos vulneráveis. Aplicado à IA, significa promover ferramentas inclusivas que liguem as pessoas e não as isolem através de relações fictícias (chatbots como "companheiros" emocionais). Num mundo individualista, a IA pode simular a empatia, mas não substitui as ligações autênticas. Jesus disse-nos que seremos julgados pelo amor: "Como o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Mt 25,40). O Papa Francisco sublinhou que a forma como utilizamos a IA para incluir os mais necessitados será a verdadeira medida da nossa humanidade. Em contextos globais, a solidariedade exige que a IA ajude as nações pobres, promovendo a fraternidade e a justiça social.
- SubsidiariedadeEste princípio defende a resolução dos problemas ao nível mais local possível, aumentando a escala apenas quando necessário, para respeitar a autonomia dos indivíduos e das comunidades. No domínio da IA, implica uma regulamentação equilibrada: local para as inovações comunitárias (aplicações educativas nas paróquias) e global para os riscos transnacionais, como a cibersegurança. Leão XIV apelou a uma governação global coordenada para a IA, mas baseada na subsidiariedade, garantindo que o poder não seja centralizado em Estados ou empresas. Por exemplo, os pais devem ser livres de escolher ferramentas educativas de IA, sem imposições estatais.
O QUATRO VALORES Os princípios fundamentais da DSI - verdade, liberdade, justiça e amor - reforçam os princípios da dignidade humana, do bem comum, da solidariedade e da subsidiariedade, oferecendo uma orientação moral para a utilização ética da IA.
I. O verdade é essencial para combater a desinformação, como os deepfakes, que geram conteúdos falsos capazes de polarizar sociedades, prejudicar reputações ou manipular eleições. A DSI apela a que a IA seja programada para verificar factos e promover a veracidade, evitando mentiras que corroem a confiança social, como sublinha o Compêndio da DSI: "A verdade é a base de uma sociedade coerente".
II. A liberdadeA liberdade de escolha, sinal da dignidade humana, protege contra a coação algorítmica que manipula as decisões, como quando a IA prevê comportamentos para orientar o consumo ou limitar as escolhas pessoais. Defender a liberdade significa garantir que os algoritmos respeitem a autonomia humana, sem cair em formas de controlo tecnológico que fazem lembrar o totalitarismo.
III. A justiça exige condições de trabalho dignas face à automatização em massa, que ameaça eliminar milhões de postos de trabalho. A IA deve apoiar salários justos e ambientes de trabalho que respeitem a dignidade do trabalhador. Rerum Novarumo trabalho deve ser remunerado de modo a permitir ao homem viver com dignidade.
IV. Por último, o amorque transcende a eficiência técnica, incorporando a misericórdia e o perdão, valores que nenhuma máquina pode reproduzir. São João Paulo II ensinou que o amor é o valor supremo da moral social católica e a IA deve estar ao serviço desta caridade, promovendo a misericórdia, a fraternidade e a compaixão, especialmente para com os mais necessitados. Estes valores garantem que a IA não só optimiza os processos, mas constrói uma "civilização do amor" alinhada com o Evangelho.
Princípio DSI | Descrição pormenorizada | Aplicação à IA | Citação relevante |
Dignidade humana | O ser humano como um fim e não como um meio; integridade corpo-alma. | Controlo das decisões vitais; não desvalorização do trabalho. | "A IA deve servir a humanidade, respeitando a dignidade única de cada indivíduo". |
Bem comum | Condições para o desenvolvimento de todos; destino universal dos bens. | Acesso equitativo; inovações inclusivas. | "Os desenvolvimentos tecnológicos que agravam as desigualdades nunca podem ser considerados como um verdadeiro progresso. |
Solidariedade | Interdependência e cuidado com os vulneráveis. | Inclusão global; evitar o isolamento digital. | "Somos chamados a agir de forma responsável e a respeitar os valores humanos fundamentais". |
Subsidiariedade | Em primeiro lugar, soluções locais; se necessário, aumentar a escala. | Regulamentação equilibrada; autonomia comunitária. | "É injusto (...) transferir para uma comunidade maior o que as mais pequenas podem fazer". |
Aplicação dos princípios a questões específicas
A DSI esclarece questões fundamentais, aplicando os seus princípios a desafios concretos em matéria de IA. A dignidade da pessoa humana é ameaçada quando a IA promove relações irrealistas, como os bots ou chatbots que simulam empatia mas não substituem ligações autênticas, levando ao isolamento numa cultura digital individualista.
O trabalho, expressão da dignidade (Gn 2,15), pode ser desumanizado pela automatização em massa, perdendo postos de trabalho e reduzindo o homem a um meio de eficiência; a Igreja defende um emprego digno que permita o desenvolvimento pessoal.
O direito à privacidade é violado pela análise preditiva de dados, em que a IA antecipa comportamentos para fins comerciais, invadindo a privacidade e tratando os seres humanos como objectos.
O bem comum é posto em risco quando a IA exacerba as desigualdades sociais, concentrando-se nas mãos de poucos poderosos e deixando os vulneráveis para trás, em vez de promover a solidariedade e a justiça.
Por último, a verdade é corroída por mentiras e deepfakes, gerando desinformação que polariza as sociedades e prejudica as reputações, exigindo uma programação ética que dê prioridade à veracidade. Estas questões sublinham que a IA deve ser ordenada ao homem, e não o contrário, guiada pela DSI para um progresso autêntico.
Riscos e desafios éticos
A IA oferece avanços como a libertação de tarefas repetitivas, inovações na agricultura e na educação e a promoção da fraternidade, se utilizada de forma ética. Tudo isto pode aliviar o sofrimento, promover o desenvolvimento integral e acabar com as guerras. No entanto, os riscos da IA são multifacetados, afectando a dignidade, a sociedade e a paz.
Antiqua e nova e as intervenções de Leão XIV destacam alguns desafios nos domínios da educação, da economia e da saúde. Os principais perigos incluem os preconceitos algorítmicos que perpetuam a discriminação, a desinformação através de deepfakes que fomentam a polarização, a perda de privacidade com a vigilância em massa, o desemprego em massa que desestabiliza as famílias, as armas autónomas letais que permitem que as máquinas decidam as mortes em violação da dignidade e as relações fictícias que agravam a solidão. A Igreja adverte que a IA pode "agravar os conflitos" se não for eticamente concebida e apela à responsabilidade moral a todos os níveis para mitigar estes riscos através do controlo humano.
Conclusão
Em suma, a IA representa uma mudança epocal que a DSI ilumina com princípios permanentes e universais, recordando-nos que a tecnologia é um dom humano subordinado a Deus, fonte de toda a sabedoria (cf. 1 Cor 1, 24). Desenvolvendo estes princípios, vemos que a dignidade humana exige que a IA seja uma aliada e não uma substituta; o bem comum apela à equidade global; a solidariedade promove a inclusão; e a subsidiariedade equilibra a regulamentação. Os riscos - desinformação, desemprego, armas autónomas - exigem uma vigilância ética, enquanto alguns benefícios, como os avanços médicos, convidam a uma esperança cautelosa.
Como católicos, somos chamados a agir: formando a nossa consciência com a DSI, utilizando recursos como o DoCat, defendendo tratados internacionais e utilizando a IA para evangelizar e servir os pobres. A inteligência não tem a ver com a acumulação de dados, mas com a procura do verdadeiro sentido da vida.
As paróquias, as escolas e as famílias católicas podem adotar ferramentas como o Magisterium AI para enriquecer a catequese, participando simultaneamente em fóruns locais para defender uma IA ética. A formação da nossa consciência na DSI permite-nos transformar esta revolução digital numa oportunidade de evangelização e de serviço aos mais necessitados.
Num mundo tentado pela idolatria de pensar que a IA pode trazer a salvação eterna, recordemos que só em Deus encontramos a verdadeira salvação e só Cristo sacia a nossa sede infinita de amor e de felicidade (cf. Sal 63,2). Que a IA nos impulsione a construir a "civilização do amor", onde a técnica e a fé convergem na fraternidade. Deus, o Logos eterno, a Inteligência eterna, convida-nos a amar através de toda a criação. Que esta revolução da IA e da cultura digital nos ajude a construir um mundo melhor, mais humano e solidário, e nos leve a amar e a dar glória a Deus.
Sacerdote e editor de "Rebels Wanted".