Ninguém em Espanha, mas sobretudo na área da Valência e Albacete, esquecerão por muito tempo a tarde de 29 de outubro de 2024. Nesse dia, uma gota de frio ou depressão isolada em níveis elevados (DANA) provocou chuvas torrenciais na zona espanhola do Levante e o transbordamento de vários rios e ravinas na zona mediterrânica espanhola.
A lama e a água atingiram dois metros de altura em várias localidades, especialmente na zona sul da capital valenciana e em localidades próximas como Catarroja, Paiporta, Algamesí e Aldaya, arrastando carros, inundando casas, garagens e lojas e, sobretudo, ceifando a vida a mais de duas centenas de pessoas.
Mais de 30 000 pessoas tiveram de ser resgatadas, primeiro pelos vizinhos e depois pelas forças da ordem.
Uma catástrofe que foi também um "terramoto" interno e externo para a Igreja: padres, freiras e voluntários de todas as idades saíram à rua para ajudar aqueles que tinham perdido tudo.
As paróquias de muitas localidades são, ainda hoje, um ponto de distribuição de ajuda material e de conforto espiritual. Neste contexto, falámos com Enrique Benavent, Arcebispo de Valência, que destaca nesta entrevista a impressionante resposta de tantas pessoas, a proximidade do Papa ao povo valenciano e, sobretudo, a necessidade de ser um sinal de esperança neste momento.
Como se recorda do dia 29 de outubro de 2024?
-No início, não sabíamos bem o que tinha acontecido. Só no dia seguinte é que começámos a perceber a dimensão da tragédia que se estava a desenrolar.
A minha primeira preocupação foi ver como estavam os padres, como estavam, se tinha acontecido alguma coisa a alguém. Levei dois dias a ter notícias de todos e a verificar que estavam todos bem. O mesmo aconteceu com os seminaristas da zona e as suas famílias. Alguns tinham sofrido danos materiais, outros não. Mas, graças a Deus, não houve nenhuma desgraça pessoal.
Também convoquei uma primeira missa na basílica da Virgen de los Desamparados, onde dei duas mensagens: a primeira foi a de colocar toda a Igreja diocesana ao serviço das pessoas necessitadas e a segunda foi a de que nos devíamos oferecer, que todos deviam encontrar uma mão amiga nos cristãos. Nesses primeiros dias comecei a visitar as paróquias que tinham sido afectadas, começando pelas da cidade de Valência, porque nos primeiros dias o acesso às paróquias e aldeias fora da cidade era complicado, se não impossível.
O que encontrou durante estas visitas?
-Vi muito sofrimento, muita dor, muita tristeza em muita gente. Alguns padres celebraram, já nos primeiros dias, missas fúnebres, num ambiente muito discreto. As famílias que sofreram a perda de um ente querido não querem aparecer demasiado em público.
Durante as minhas visitas, falei com pessoas que perderam não só as suas casas, mas também todo o seu ambiente de vida: a padaria onde iam comprar pão, a loja onde costumavam ir às compras... Tudo desapareceu debaixo da lama. O bairro de Huerta Sur é possivelmente uma das zonas com maior concentração de empresas familiares, pequenas empresas, concessionários de automóveis, centros comerciais...
Quando uma pessoa perde todos os pontos vitais de referência, fica subitamente desorientada. Todos ficaram gratos pela visita, pela vossa presença junto deles. Agradeceram o facto de termos celebrado a Eucaristia, como acontece em paróquias como a de Paiporta, porque é um sinal de como a fé tem de nos ajudar a iluminar esta realidade que estamos a viver.
Como é que a fé nos conforta nestes tempos de desolação?
-Penso que a primeira coisa a fazer é ir ao encontro das pessoas afectadas, mostrando o amor e a proximidade do Senhor àqueles que sofrem. Que não se sintam sós, que não se sintam ignorados, que não se sintam abandonados. Depois, a dor dará lugar, com o tempo, a novos sentimentos. O mais importante no acompanhamento é saber encontrar a palavra certa no momento certo. Penso que o segredo é ser essa presença. Agora que algumas paróquias estão a tornar-se centros de distribuição de bens de primeira necessidade, como em La Torre, celebram muitas vezes a missa na praça. E as pessoas apreciam e respeitam essas celebrações, porque é um sinal de que estamos lá. Pequenos sinais que, de alguma forma, mostram a presença da Igreja e a presença da fé como uma pequena luz, mas que tem de iluminar a vida destas pessoas.
Vimos padres atolados até ao pescoço na lama, freiras a descarregar paletes e muitos, muitos jovens que responderam a um apelo à solidariedade e que ainda lá estão. Será tempo de redescobrir a força do apelo a ajudar os outros?
Penso que estas ocasiões podem tornar-se um apelo para os jovens. De facto, eles responderam. Vi-os lá. Muitos deles reconheceram-me nas minhas visitas às aldeias e ficaram contentes por me verem.
Para além disso, vi como há muitos jovens que podem não ser cristãos, mas que também foram ajudar. Foi um belo testemunho de como, naqueles momentos, nos sentimos irmãos e irmãs daqueles que mais sofriam. É um testemunho de autêntica solidariedade, porque é altruísta, como salientei na homilia da Missa pelas pessoas afectadas que todos os bispos espanhóis celebraram na Catedral de Almudena durante os dias da Assembleia Plenária em novembro de 2024.
Passaram semanas desde os primeiros dias de novembro. Como é que a Igreja vai continuar a estar presente neste processo a longo prazo? Tem estado a trabalhar neste sentido?
-A Cáritas está, desde o início, a tentar responder às necessidades urgentes, às primeiras necessidades. Recebemos muitas doações, tantas que por vezes não sabíamos onde as guardar.
Com os olhos postos no futuro, os donativos que estamos a receber vão ajudar as famílias necessitadas a resolver um problema a longo prazo. Não todas, porque a destruição é imensa. Há aldeias, como Paiporta, onde não se pode comprar pão nem óleo, porque tudo foi arrasado...
Há um longo trabalho de reconstrução pela frente, no qual as autoridades devem ser as primeiras a tomar a iniciativa e a fornecer os meios. A Igreja ajudará, porque haverá sempre pessoas para quem a ajuda pública não resolverá as suas necessidades. E talvez as nossas também não, mas se pudermos ajudar um pouco para, não sei, atenuar a dor, estaremos lá. O importante agora é olhar para as pessoas que precisam.
Tivemos reuniões com os vigários episcopais e os párocos das paróquias afectadas para fazer uma reflexão comum e considerar tanto os danos materiais como a assistência pastoral nestas circunstâncias.
A Igreja sempre esteve presente nos bairros, e é para isso que servem as paróquias. As paróquias são a presença da Igreja nos bairros das cidades ou nas aldeias e é por isso que continuaremos a estar atentos às situações das pessoas que vivem nesses bairros, que vivem nessas aldeias e que precisam de ajuda. Temos métodos de escuta, de acompanhamento, e colocaremos tudo isso ao serviço dessas paróquias e daqueles que precisam.
Recebeu o visita do Cardeal Czerny e o Papa tem seguido Valência de muito perto nos últimos meses.
-Para os sacerdotes e para a diocese, foram gestos muito próximos, muito consoladores. O Papa tem estado muito próximo, desde uma primeira mensagem gravada que me enviou através do presidente da Conferência Episcopal Espanhola, até um telefonema pessoal, duas alusões no Angelus e duas alusões no Angelus. um momento de oração diante de uma imagem da Virgen de los Desamparados, que lhe oferecemos há meio ano, aquando de uma visita da Junta da Arquiconfraria da Virgem.
Milhares de pessoas ficaram sem nada de um dia para o outro. Por vezes, queixamo-nos da dificuldade de pregar num ambiente abastado que tem tudo, mas o que dizer da pregação para aqueles que perderam tudo? É mais fácil ou o contrário?
-Não sei, sinceramente, porque a pessoa que sofreu tem as suas fortes questões de fé nesse momento. O que é claro é que, por vezes, como diz o Evangelho sobre Zaqueu, pensamos que somos ricos e somos pobres. E só quando nos apercebemos da nossa pobreza é que podemos encontrar a verdadeira alegria em Cristo. Pensamos que somos ricos, mas somos pobres. E Zaqueu sabia que era pobre, porque lhe faltava o mais importante, que não era o dinheiro, mas o encontro com o Senhor.
Não podemos terminar sem falar da Virgen de los Desamparados, uma invocação tão cara a Valência e que agora adquire tanto significado. O que é que se pede à Virgem?
-Peço que o povo de Valência recupere a esperança que talvez muitos tenham perdido. Que possam experimentar a consolação de Deus nos seus corações e que possam sempre descobrir que, mesmo quando estão desamparados, têm uma mão amiga ao seu lado, porque as obras de misericórdia são obras de esperança. É o que peço a Nossa Senhora neste momento.