Com mais de 50 anos a cobrir a atualidade do epicentro do cristianismo, o jornal mexicano Valentina Alazraki é um desses nomes indissociáveis da profissão de vaticanista. Trabalha para a Televisa, a principal cadeia de televisão mexicana, desde 1974 e já viveu - e contou - quatro conclaves e mais de 160 viagens papais.
A sua proximidade e amizade com São João Paulo II O livro deu origem a alguns dos títulos mais pessoais sobre o Papa polaco, como "A luz eterna de João Paulo II".
Quando Francisco foi eleito para a Cátedra de Pedro, Alazraki já era a decana dos repórteres que cobrem o Vaticano. Uma posição e um passado que a tornaram numa das comunicadoras mais próximas do Papa.
A sua relação com o Papa Francisco foi além de um conhecimento profissional, como ela conta nesta entrevista para Omnes, ela manteve uma correspondência particularmente significativa com o pontífice e valoriza essas cartas como um sinal da qualidade humana e da proximidade do papa argentino.
É um dos profissionais de comunicação que mais conheceu e lidou com o Papa Francisco. Qual foi o primeiro contacto próximo que teve com o Papa?
-Quando o Papa Francisco foi eleito, eu tive o enorme privilégio de ser a decana dos repórteres. Por isso, o então porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, pediu-me que recebesse o Papa Francisco por ocasião da sua primeira viagem internacional ao Brasil. Foi o que fiz na viagem de ida.
Com um tom absolutamente pouco profissional - que é, digamos, a minha maneira de ser - disse ao Papa Francisco que éramos os seus companheiros de viagem, que gostaríamos que ele nos visse assim, que sabíamos muito bem que os jornalistas não eram "santos da sua devoção": quando era arcebispo na Argentina não dava entrevistas, etc. Mas também lhe disse "Provavelmente pensam que vieram para a nossa cabana, que é uma espécie de jaula de leões. Mas isso não é verdade. Nós não mordemos, não somos maus. Queremos que nos vejam como companheiros de viagem e, obviamente, somos jornalistas, por isso gostaríamos que respondessem às nossas perguntas num determinado momento".
O Papa Francisco respondeu no mesmo tom, muito calmo, muito solto, muito espontâneo, dizendo que, de facto, não se sentia à vontade com a imprensa, que achava que não sabia dar entrevistas, mas que ia fazer um esforço e que, no regresso do Brasil a Roma, responderia a algumas perguntas. Qual não foi a surpresa quando, no regresso, o Papa deu a sua primeira conferência de imprensa e se revelou um comunicador extraordinário. Era como se tivesse estado toda a vida no meio dos jornalistas. Esse foi o primeiro contacto com o Papa Francisco.
Obviamente, o facto de ter sido eu a acolhê-lo "colocou-me", digamos assim, perante o Papa Francisco. A partir desse momento, eu era "o reitor", tendo em conta que sou mexicano e que falamos a mesma língua, o que facilitou o início da nossa relação.
O que realmente me chamou a atenção, nessa viagem de ida, foi o facto de o Papa Francisco - embora não tenha respondido às nossas perguntas, porque decidiu fazê-lo no regresso, e isso foi uma novidade em relação tanto ao Papa João Paulo II como ao Papa Francisco - não ter respondido às nossas perguntas, porque decidiu fazê-lo no regresso, e isso foi uma novidade em relação tanto ao Papa João Paulo II como ao Papa Francisco. Bento XVIEle queria cumprimentar-nos um a um. Ficou à entrada da cabina e nós passámos, um após outro, para o cumprimentar. E lembro-me que, nessa ocasião, o Padre Lombardi disse ao Papa Francisco que eu estava no Vaticano há muitos, muitos anos (40 anos na altura). E depois o Papa Francisco fez uma piada dizendo que se depois de 40 anos no Vaticano eu ainda não tivesse perdido a fé, ele abriria a minha causa de beatificação.
O que recordo sobretudo dessa primeira viagem é a proximidade, a simplicidade, a humanidade do Papa Francisco, que quis ver-nos como companheiros de viagem e que quis passar um momento com cada um de nós para que nos apresentássemos, para dizer de onde vínhamos, de que meio éramos. Foi o seu primeiro contacto connosco.
O Papa passou de um arcebispo que não dava entrevistas a um dos homens cobiçados pela imprensa. Como se manteve a relação do Papa com os meios de comunicação social?
Penso que esse primeiro encontro abriu um caminho muito bonito para a aproximação entre o Papa e a imprensa porque, a partir desse dia, em todas as suas viagens, no caminho para lá, o Papa quis cumprimentar-nos.
Em muitas ocasiões, ele passeava pela cabina e permitia que todos falassem um pouco com ele. Era tudo muito rápido, mas, obviamente, cada um de nós podia dizer-lhe qualquer coisa, dar-lhe um presente, ou mesmo perguntar-lhe uma selfiepedir a bênção para um doente com uma fotografia, mesmo que seja uma pequena gravação.
A ideia era que este contacto com o Papa Francisco não fosse jornalístico, ou seja, não tínhamos de fazer perguntas, porque as perguntas eram feitas no regresso. Obviamente que há sempre alguém que "meio faz" uma pergunta, em teoria não abertamente jornalística, mas cujas respostas podem tornar-se notícia. Quando o Papa saiu do nosso camarote, o costume era trocar informações: o que ele vos disse, o que vocês lhe deram...Os pormenores que também deram um pouco de cor ao primeiro dia da viagem.
... Lembro-me de muita coisa, não é?
-Há muitos momentos que recordo com muito carinho. Por exemplo, em 2015, fiz 60 anos e estávamos a regressar de uma viagem, das Filipinas, acho que me lembro. O Papa Francisco surpreendeu-me com um bolo, até com uma vela, só pôs um zero, para não dizer que eu tinha 60 anos. Veio pessoalmente entregar-me o bolo e, com um grande sentido de humor, não mencionou a minha idade, mas disse que eu tinha vindo para o Vaticano quando era muito nova, de bambina. Foi um momento muito bonito, porque sabemos que o Papa Francisco não canta, mas ele também cantou os "parabéns". Foi uma coisa que nunca tinha acontecido antes num avião papal e a verdade é que para mim foi um gesto incrível porque, para além do bolo, deu-me um presépio de cerâmica branca muito bonito, estilizado, moderno, que guardo comigo e que obviamente coloco todos os Natais. Guardo-o com carinho, porque veio das mãos do Papa.

Noutras circunstâncias, celebrou também as minhas 150ª Jornadas Papais e, recentemente, as minhas 160ª Jornadas Papais, no meu regresso da longa viagem à Ásia.
Ele teve sempre gestos muito afectuosos, gestos muito simpáticos, que para mim, obviamente, representam um tesouro imenso. Já houve circunstâncias em que, por alguma razão, não fiz uma viagem e o Papa Francisco, no início dessa viagem, disse: "Lamentamos muito a ausência do nosso reitor". Sempre palavras de afeto, gestos a querer mostrar-me esse afeto.
Penso que, falando de uma relação entre um Papa e um jornalista, é algo muito bonito e muito valioso. Obviamente, o Papa tem feito gestos como este com outros colegas, mas no meu caso, tendo sido reitor, talvez tenha ido um pouco mais longe, como, por exemplo, dar-me a condecoração da Ordem Piana, que é a mais alta condecoração que um Papa dá a um leigo, e creio que nunca foi dada a uma mulher. Vivi esta condecoração como um reconhecimento do Papa Francisco a todos os jornalistas que cobrem dia após dia a fonte do Vaticano, o que obviamente não é um trabalho fácil, porque envolve muitos aspectos e requer conhecimento, preparação, prudência, respeito e ética.
Quais foram os momentos com o Papa que tiveram maior impacto na sua vida pessoal e profissional?
-A recordação mais querida que tenho do Papa Francisco é a correspondência que trocámos e da qual nunca falei durante o seu pontificado. Muito cedo no seu pontificado comecei a escrever-lhe cartas de uma forma muito pessoal, com um conteúdo muito pessoal, em que também, pouco a pouco, comecei a pedir-lhe uma entrevista, uma resposta... Lembro-me, por exemplo, de uma sobre a possibilidade de o Papa Francisco viajar para o meu país, o México.
Mas o mais extraordinário de tudo isto é que o Papa Francisco sempre respondeu às minhas cartas com a sua própria letra; com uma letra muito pequena, - confesso que por vezes quase precisei de uma lupa para conseguir identificar a letra do Papa.
Nalgumas ocasiões, houve também chamadas telefónicas que me causaram uma enorme surpresa porque havia um número oculto, que eu não conseguia identificar, pelo que nunca poderia imaginar que viessem do Papa.
Lembro-me também de uma coisa muito bonita: não fiz uma viagem ao Líbano e, quando regressei, o Papa Francisco enviou-me uma linda caixa de tâmaras, porque eu não tinha feito essa viagem.
Para mim, estas cartas de que nunca falei (e nunca contarei o seu conteúdo) e estas chamadas telefónicas falam-me de um Papa com um valor humano muito forte, da sua proximidade, de uma simplicidade que nunca se imaginaria como é um Papa a falar ao telefone.
Também fiquei impressionado com os momentos em que marcámos uma entrevista. Foi a mim que ele deu a primeira entrevista televisiva e tivemos quatro em todo o pontificado. A verdade é que é um privilégio enorme, porque não há nenhum outro meio de comunicação social que tenha tido tantas entrevistas com o Papa Francisco. Nós organizámo-las praticamente por telefone. Eu quase que "via", imaginava o Papa do outro lado do telefone, com a sua agenda, com o lápis ou a caneta na mão... Ele perguntava-me "quando é que queres vir?" E na minha cabeça eu dizia "como é que é possível o Papa perguntar-te quando é que queres vir? Quer dizer, é ele que tem de marcar o encontro". E eu respondia sempre: "Papa Francisco, quando tu disseres, quando puderes, quando quiseres"..., e ele dava-me a data, a hora. Imaginava-o a escrever a data e a hora na sua agenda.
Penso que estes pormenores são algo de inédito e falam claramente desta personalidade extraordinariamente humana, acessível, simples. Um Papa que, nesse sentido, se desenrascava um pouco sozinho. Os seus secretários ajudavam-no evidentemente em mil coisas, mas houve coisas que ele quis tratar sozinho, digamos assim. Um dia explicou-me: para ele, era como gozar a liberdade, por isso vivia em Santa Marta. Numa entrevista, disse-me que não tinha ido ao Palácio Apostólico por "razões psiquiátricas", porque dizia que não queria estar sozinho, como num funil, queria estar no meio das pessoas. Ter esta liberdade de escrever, de responder a cartas, de telefonar às pessoas, era como "andar pelas ruas da Argentina". Em Buenos Aires, andava muito a pé, deslocava-se pela cidade de metro, de autocarro, a pé ..... Esta sua liberdade de ter uma agenda pessoal - que conseguia sobretudo durante as tardes em Santa Marta - dava-lhe a ideia de liberdade. Ele não podia sair dali, mas essa agenda pessoal, acho que lhe dava oxigénio.
Aqueles de nós que tiveram a oportunidade de trocar cartas ou telefonemas guardam isso como um enorme tesouro. Porque o Papa, nessas cartas, escrevia com um afeto extraordinário, com uma sensibilidade, sempre atento ao que se lhe podia dizer, se havia uma situação complexa a nível familiar ou de saúde ou de trabalho... O Papa respondia em sintonia, ou seja, sobre esses temas e oferecendo sempre a sua ajuda e as suas orações... Para mim, este é um legado extraordinário.
Tem alguma história particularmente significativa que goste de recordar com o Papa?
-Tal como o Papa Francisco festejou o meu aniversário no avião com um bolo, eu festejei o dele com um bolo em forma de chapéu de charro. Era obviamente um "bom desejo" que o Papa Francisco visitasse o meu país, o México. Levei-lho no início da audiência geral na Praça de São Pedro.
Dos últimos momentos, por exemplo, quando voltámos da última viagem que fizemos com o Papa Francisco à Córsega, o aniversário dele ia ser no dia seguinte e eu dei-lhe um bolo, que um pasteleiro fez muito bem, com um caderno e uma caneta com o nome da Associação dos Jornalistas Acreditados no Vaticano, da qual sou atualmente presidente. E o Papa gostou.
Tal como o Papa João Paulo II e o Papa Bento XVI, foi a minha vez de oferecer um chapéu de charro ao Papa Francisco. Fi-lo sempre por ocasião das viagens dos pontífices ao México. Felizmente, os três visitaram o meu país - João Paulo II em cinco ocasiões - e não podia faltar um chapéu de charro, que ofereci ao Papa no avião a caminho do México.
Como é que o Papa foi percepcionado num contexto comunicativo polarizado?
-A nível profissional, cobrir o Papa Francisco tem sido uma experiência extraordinária mas complexa. Por uma razão: devido à forma próxima, direta e espontânea como o Papa Francisco fala, pode ser um problema para os comunicadores que não estejam bem preparados ou que não tenham sentido de responsabilidade ou ética.
Passo a explicar: falando de uma forma tão coloquial e coincidindo com a ascensão das redes sociais - que é a era que tocou o Papa Francisco - tenho por vezes lamentado que haja frases do Papa, muito espontâneas, que depois entram nas redes e se tornam virais, sem qualquer contextualização.
Considero que ser vaticanista hoje, como no meu caso, é muito mais complexo e complicado do que era há 40 ou 50 anos. Porque há 40 ou 50 anos havia muito tempo para verificar a informação, corroborar todas as fontes e verificar se uma notícia era de facto real. Agora, porque tudo é tão imediato, tudo se torna viral num segundo, numa selva de redes sociais, e há o perigo de colocar nas redes frases ou opiniões do Papa Francisco que não correspondem à verdade, no sentido em que não correspondem ao que ele disse ou quis dizer, porque falta o contexto. Penso que isto é muito grave porque pode criar muita confusão.
Tentei colocar o que o Papa Francisco disse - quando o disse de uma forma muito coloquial - sempre no contexto para que fosse realmente entendido: porque é que o Papa o disse, como o disse e porque é que usou certas expressões que por vezes fazem parte de um dialeto portenho, com palavras que são muito típicas dele, de como ele falava na Argentina.
Penso que, deste ponto de vista, é preciso muita ética e muito sentido de responsabilidade. Num mundo tão polarizado, penso que o Papa Francisco também tem sido objeto e vítima dessa polarização.
O Papa Francisco tem prioridades que muitas vezes não coincidem com as dos grandes grupos de poder - que são também os que gerem muitos órgãos de comunicação social. Por isso, há um confronto, por vezes agressivo, por parte de alguns meios de comunicação social, sobre algumas posições do Papa, que podem ser inerentes ao aspeto social, como toda a questão das migrações, por exemplo, a opção pelos mais desfavorecidos, a proximidade com as pessoas mais necessitadas, ou certas aberturas do Papa que vão no sentido de uma grande tolerância, de uma grande misericórdia, mas que também são vistas por alguns grupos quase como uma traição à doutrina.
Penso que foram anos complexos, a nível profissional, neste sentido. Numa das entrevistas, perguntei ao Papa Francisco se estava consciente do risco que corria ao falar de forma tão espontânea. O Papa disse-me que sim, que estava consciente desse risco, mas que acreditava que era o que as pessoas gostavam, que ele era tão espontâneo, tão direto, tão próximo, com uma linguagem tão clara que todos podiam entender, e que preferia correr o risco de, por vezes, ser mal interpretado ou mal compreendido.
Essa era uma parte do trabalho. A outra foi realmente extraordinária, porque estávamos a seguir, não apenas um Papa, mas um grande ser humano. Há imagens que são inesquecíveis, como, por exemplo, a primeira viagem do Papa a Lampedusa, quando estava em frente ao Mar Mediterrâneo, que para ele se tornou um cemitério, a atirar aquela coroa de flores a pensar em todos os migrantes que morrem; ou quando o vimos, sozinho, à chuva, na Praça de São Pedro, durante a pandemia, a pedir o fim daquela catástrofe para o mundo. Foi extraordinário ver a forma como o Papa foi capaz de chegar a tantas pessoas. Aquelas imagens do Papa Francisco com os doentes, com os migrantes, nos campos de refugiados, nas prisões, são verdadeiramente inesquecíveis.

Agora estamos a entrar numa nova fase. Como é que vive momentos tão intensos como um conclave ou um sínodo?
-Viver um conclave é uma experiência profissional verdadeiramente impressionante. O meu primeiro conclave foi após a morte do Papa Paulo VI. Estava a começar a minha carreira, era muito jovem, e lembro-me da emoção de estar na Praça de São Pedro, à espera do famoso fumo. No caso de João Paulo I, lembro-me que estava na praça com o meu operador de câmara, um homem com muita experiência, que tinha feito guerras, muitas coberturas. À tarde, começou a levantar-se um fumo cinzento e ele disse-me "vou-me embora porque o fumo é cinzento, até amanhã"; e tal como ele, muitas, muitas equipas foram embora. Eu não tinha experiência, tinha 23 anos e era um completo novato, mas quando vi o fumo cinzento pensei que o cinzento não era preto nem branco. Qual não foi a minha surpresa quando, de repente, com as posições dos comentadores do Vaticano meio vazias na praça, o fumo branco se definiu e, de facto, foi anunciada a eleição do Papa João Paulo I. Encontrei um operador de câmara italiano que conhecia e pedi-lhe o enorme favor de me filmar no momento em que o Papa ia sair pela primeira vez para a varanda. Tenho essa recordação muito forte e muito marcante, porque foi uma grande lição de que, como jornalista, nunca se deve sair de cena.
O seguinte foi a eleição de João Paulo II e depois, após a morte de João Paulo II, a eleição do Papa Bento XVI. Foram todos momentos de uma intensidade impressionante.
Talvez a nível profissional, o momento mais difícil seja quando se tem de anunciar a morte de um Papa. No caso de João Paulo II, vivemos durante dias, semanas, com a angústia de "perder" essa notícia, porque o Papa estava muito doente: não sabíamos quando ia morrer. Em termos de notícias, esse é um momento muito forte, mas obviamente o conclave é outra história, porque estamos à espera de saber o nome do novo Papa. E há sempre uma grande emoção quando aparecem na varanda e começam a dizer o nome do futuro Papa, porque toda a gente tenta perceber se conhece ou não o cardeal que foi eleito como novo pontífice. São momentos de grande intensidade.